meu pai nasceu no ano do golpe militar, em uma família de muitos irmãos e pouco dinheiro. uma tia distante ofereceu dois sacos de feijão pra "adotar" o meu pai. ainda bem que a mãe dele não aceitou.
o pai do meu pai, meu avô, queimou a certidão de nascimento da minha tia no meio da rua pra ela não casar com o vizinho negro. minha tia casou mesmo assim e o outro tio também casou com a vizinha da mesma família. meu avô não deve ter ficado feliz, mas não tá mais aqui pra eu perguntar isso pra ele.
a mãe do meu pai, minha avó, morreu depois do meu pai fazer de tudo o que podia pra ela ter uma vida boa. nunca vi meu pai tão triste quanto no dia que se despediu da minha avó. ela teve uma boa vida, afinal, mas morreu cedo demais.
meu pai pega a bicicleta todo o domingo e visita os irmãos que moram na mesma cidade, deve ser o tio preferido da maioria dos meus primos, chama minha mãe de mama (freud, corre aqui) e às vezes gosta mais do meu companheiro do que de mim. em geral, meu pai é um ótimo pai.
as crianças também acham meu pai ótimo. é normal ouvir, na frente de casa, um mini adulto gritando "tio laaaaaio, vamo bate bola no campinho?”. sinto falta da versão do meu pai de quando eu era criança. só não sinto falta de quando eu era adolescente, meu pai era um chato.
um dia, depois de mais uma rebeldia minha, meu pai sentou comigo na frente de casa, mostrou seu contra cheque, descreveu os gastos e escancarou os esforços que ele e minha mãe faziam pra eu ter o mínimo de conforto. sempre querendo dar uma vida boa pros outros, esse é meu pai.
corta a grama dos vizinhos, limpa a boca dos bueiros, mantem um jardim entre a rua e o muro do campo de futebol pra que as pessoas não joguem lixo onde não é pra jogar lixo.
meu pai não fuma, bebe socialmente e fica bêbado apenas em eventos que envolvam finais felizes em campeonatos de futebol ou eleições municipais. meu pai é jogador de futebol (nem profissional, nem frustrado) e sempre foi político (nunca se elegeu, continua se frustrando). seu traço tóxico é acreditar que bolsonaros e pablos são caras inteligentes. pelo menos meu pai não gosta do neymar.
morando há quilômetros e quilômetros salgados da praia, ele ama o mar. viajar com ele não é só alegria, mas é bonito de ver como aproveita as coisas novas e não reclama de nada. meu pai sofre de positividade tóxica. não importa o quão fudido ele esteja, sempre consegue ver o lado bom da coisa. se vangloria de tomar banho gelado no inverno e repete essa informação como se fosse um herói. pro meu pai, tudo é competição e, mesmo perdendo, ele sempre ganha.
meu pai sabe fazer conta de cabeça, não sofre de calvície e abre todas as embalagens sem respeitar o “abra aqui”. puxei isso à ele, que fez sessenta anos no dia nove de outubro de 2024 e pretende usar todas as prioridades a que tem direito. Também vai se aposentar até o final do ano e tem planos que ainda são secretos pra mim.
um dia antes do meu pai fazer aniversário, eu chorei. quieta, num cantinho da cama, me espremendo como se fosse uma minhoquinha tentando caber em um buraco do tempo, entrei em crise.
então é isso? a vida passa e quando vê teu pai se torna um idoso? do nada, do nadão? tudo bem que ele corre, se alimenta bem, estuda, tem planos que ainda são secretos pra mim… mas, ainda assim, IDOSO. e ele entrando pra terceira idade, o que sobra pra minha mãe que vem logo atrás? ela disse que procura no youtube quando não sabe fazer alguma coisa no celular. achei fofo, mas chorei por isso também.
sei que posso estar exagerando e o futuro pode ser sereno pra nossa família, mas quanto tempo vai demorar pra gente brigar porque eles não podem mais fazer o que der na telha? será que vou ter que voltar a morar com eles ou obrigar eles a morar comigo? qual vai ser o primeiro golpe em que eles vão cair? quem vai morrer primeiro? quando? como? por que? o que eu vou fazer a partir disso? chorar daqui pra frente adianta? pra quem eu vou chorar? o colo deles ainda vai funcionar ou sou eu quem vai ter que dar colo?
e tem mais.
naquela cama, um dia antes do aniversário de sessenta anos do meu pai, me dei conta de que não sou mais uma jovem adulta. eu sou adulta Adulta. e não importa se uso all star amarelo, camiseta engraçadinha e gasto um monte de dinheiro em festivais. posso até tentar fugir da realidade, mas as responsabilidades estão grudadas como nunca na sola do meu pé e isso me apavora. queria sentir a passagem do tempo do mesmo jeito de quando era criança. os velhos eram sempre velhos, os adultos eram sempre adultos e a gente tinha uma vida inteira pra brincar.
quando foi que o tempo virou?
Goodvibes de OUTUBRO
Conheci o Deserto do Atacama e afirmo que é o lugar mais interessante e louco e diferente que já conheci. Não sou good vibes a ponto de ter sentido uma energia diferente por lá, mas acredito que todo mundo deveria conhecer aquele pedação árido e farto do mundo. Me senti pequeninha e essa é a melhor sensação que um viajante pode experimentar.
A FLIP é uma festa, sim, e eu fui, eu tava! Sério, não sei se é porque sou do interior, mas eu fico deslumbrada quando encontro pessoas famosas. Famosas literárias então… é a minha calçada da fama! E na FLIP tu tá lá, tomando um drinkão, e dá de cara com a Silene Seagal, o Jeferson Tenório, o José Falero e até com aquelas pessoas que você conhece de algum lugar, mas não sabe de onde (depois tu descobre que é um escritor ou escritora de algum livro MASSA). Além disso, tem coisa interessante acontecendo em toda esquina. A Maria Homem falando sobre luto, o Dunker sobre o medo da página em branco, a Micheliny Verunschk fazendo piada com canibalismo, a Andréa Del Fuego tentando se esquivar de fofoca… é o máximo. E sabe o que tem mais? Os carros de bolo! Sim, são carrinhos de mão cheios de bolo. Bolo de coco, de limão, de banana. Tem brigadeiro, quindim e a pergunta que não quer calar: por que não tem carro de bolo em todo o Brasil? Ah, a FLIP e Paraty também formam uma combinação perfeita. As casas bonitinhas, as flores penduradas nos muros, as pedras dificultam o andar e nos pedem calma. Tem também a praia e o melhor da praia: o forró pé na areia no fim da noite. Encontrei por lá a Natalia Timerman louquíssima enquanto eu comprava uma dose de cachaça Gabriela. Nessa mesma noite, voltando pro airbnb, escutei uma mulher dizendo que tava perdida. Olhei pra trás e era a Vera Iaconelli. Ai, ai, ai… Existe outro evento que pode se comparar a isso? Eu tava lá com alguns amigos e só ficamos chateados com as festas onde só era liberada a entrada com nome na lista ou se conhecesse alguém importante. Nossa piada da semana foi que, em até cinco anos, pelo menos um de nós tem que se tornar esse alguém importante.
O áspero das faltas, meu primeiro livro, nasceu na FLIP, em Paraty, no dia 10 de outubro de 2024, antes do almoço. Meu amigo, companheiro de arte, foi quem o viu primeiro. Peguei na mão, abracei, era maior do que tinha imaginado, era lindo. Devolvi pra estante, era meu e ao mesmo tempo do mundo. Sou uma mãe literária desapegada. Depois do almoço, voltei para apresenta-lo ao mundo. Não haviam filas pra autografo, apenas três amigos imensos e um colega escritor cheio de carinho. Foi pé na areia, a chuva segurou até o final da festa de boas vindas e eu usava um vestido bem colorido. Comprei duas cópias pra passear pelas ruas de Paraty. Espero que dê sorte e que as pessoas gostem da minha poesia.
Um salve pro Minoxidil que está fazendo com que o meu cabelo grude na cabeça e pare de se espalhar pela casa. Todo mundo agradece, principalmente o aspirador de
cabelopó.
Badvibes de OUTUBRO
Todo mês, quando fico menstruada, aparecem algumas espinhas entre as minhas bochechas e a boca. Uma delas sempre inflama, eu fico arrancando a casquinha e, depois de muita luta, a ferida fecha. Sabe quando isso acontece? Quando fico menstruada de novo e as espinhas reaparecem. Minha cara não tem paz.
Voltar pra academia depois das férias é a morte.
A Associação dos Sem Carisma vai dar uma pausa e, mesmo inscrita em outras newsletters, me sinto órfã. A ADSC foi a primeira que comecei a seguir e talvez a que mais me incentivou a começar a escrever por aqui. Sei que as gurias têm outros mil projetos, mas eu não tava preparada, não.
Deitei na rede e vim de LEITURINHA
O colibri (Sandro Veronesi) - o homem-pássaro que corre parado enquanto todas as tragédias se fazem movimento.
A escrita como faca e outros textos (Annie Ernaux) - escrever para consertar.
No meu rolo da câmera rolou essa foto aqui
O que é a VIDA, Gabriela?
Escrever um filho pra chamar de seu.
1. Que texto mais lindo e emocionante sobre seu pai, Gabriela!
2. "Escrever um filho pra chamar de seu", adorei isso.
3. As fotos da sua viagem estavam deslumbrantes!